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A mostrar mensagens de 2015

Não (sei se) são poemas

Alain Oulman foi talvez o melhor compositor que Amália Rodrigues teve. Um homem magro, de estatura franzina e muito aprumadinho: "um menino de coro", assim lhe chamava Amália. Foi este “menino de coro” que alargou horizontes melódicos e poéticos à fadista. Fascinado pela voz de Amália, conta-se que ele terá percorrido quilómetros para a encontrar e entregar-lhe uma das suas composições; diz-se ainda que veio a encontra-la num acampamento na Ericeira. “Que quer de mim?” – perguntou-lhe a fadista. “Que cante a minha música.” “São fados?” “Não sei se são fados, mas a minha música tem a dor do fado, aquela pena; a minha música tem, como a sua voz, um choro, um choro no cantar.” Alain cantou o tema “Vagamundo”. No fim daquele encontro, Amália respondeu “Estive toda a minha vida à sua espera, Alain!” Assim são os teus textos: não sei se são poemas mas têm a mesma suavidade, o mesmo sabor, a mesma melodia escondida atrás de cada palavra. Nuno Campo Monteiro Espo

Sentido de Comunidade

Hoje o dia foi bastante stressante, cansativo: as horas pareciam segundos, o tempo era escasso para o muito que eu tinha de fazer. Chega o fim o dia e o que mais me apetece é tomar banho, jantar e ficar tranquilo em casa; ou sair, passear, conversar e rir-me com os meus amigos… mas há alturas em que outros afazeres se sobrepõem ao que queremos… Por fim chego a casa. Estou muito cansado; sento-me no sofá, apenas para sentir o gostinho de quem se sentou no sofá e eis o que me vem à memória: « Há um só Corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança; um só Senhor, uma só fé, um só baptismo; um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos. » [Ef 4, 4-6] Fico a pensar um pouco neste texto e no motivo pelo qual me veio à memória… Sentido de comunidade; o mesmo sentido que me faz largar o meu conforto, a minha vontade para trabalhar em prol de um bem comum. Comunidade ( communitas ) é o resultado da junç

dentro do meu segredo

grande espectáculo texto maravilha um elenco muito bom o público de pé a aplaudir numa ovação prolongada que encanto os actores agradecem por várias vezes a consideração do público saem por fim para de imediato regressarem agora não pelos aplausos mas para saudaram os seus conhecidos amigos e familiares ou ilustres desconhecidos do público que querem felicitar pessoalmente este ou aquele actor     aquela actriz     a encenação no meio de tanto entusiasmo há sempre alguém que anda de um lado ao outro pegando em coisas juntando coisas esboça um sorriso a alguém que por compaixão lhe apresenta os parabéns pelo espectáculo e     por fim cansado da sua inutilidade sobe à régie     arruma as suas coisas faz um balanço do espectáculo em geral de alguns pormenores da sua prestação e deixa cair algumas lágrimas enquanto espera pelo fim da última parte do espectáculo quando a sua ausência torna-se presente já só resta o elenco na sala escuta-s

a olhar e a sorrir para mim

que olhar é esse a querer perscrutar no meu não é que não me agrade mas não será socialmente correcto e que nos importa a sociedade quando são os sentimentos que ditam a nossa vontade deixo-me dominar pelo teu sorriso doce enquanto os teus olhos continuam nos meus e a tua voz embala-me como um suave harpejo fixo o meu olhar em ti deixo-te ir até a tua sombra se desvanecer na sombra da noite amanhã será outro dia e quando acordar sei que estarás aí a olhar     a sorrir para mim. nuno campo monteiro 30. XI.2015

Para o Ano Santo da Misericórdia...

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Hoje li dois e-mails, daqueles que assinalamos com um asterisco para ler depois, que me esbofetearam… um, porque me fez recordar que “nunca tenho tempo”, o outro que “estou doente” no contínuo egoísmo de ser Eu. Mas a lição maior destas duas mensagens era o facto de trazerem solução para ambos os problemas. Lembrei-me, então, de um amigo muito especial me chamar à razão dizendo que «não existem pessoas más mas pessoas que estão em sofrimento», e por vezes bem próximas de mim e eu sem lhes prestar atenção, porque “nunca tenho tempo”… «Fui à clínica do Senhor para fazer uma consulta de rotina. Constatei que estava doente. Quando Jesus me mediu a pressão arterial, viu que estava baixa de ternura. Ao medir-me a temperatura, o termómetro registou 40º C de ansiedade. Fez-me um eletrocardiograma e o diagnóstico acusava necessidade de bombear mais amor, pois as minhas artérias estavam bloqueadas de solidão e saudade, e não abasteciam o meu coração vazio. Passei pela ortop

Tanto Mar (Carta-Poema a Francisco Buarque de Hollanda 40 anos depois!)

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No dia em que Portugal comemora quarenta anos de liberdade – ainda que esta seja dissimulada pelos “segundos da caneta e da cruzinha”, por isso é muito importante desfrutar desse dever cívico, segundo a minha opinião, que vale o que vale! – sem objectivos partidários, parafraseei um poema de Chico Buarque, “Tanto Mar”, em jeito de resposta às duas versões que o cantautor carioca compôs em 1975, solidário com “Revolução dos Cravos” e em 1978, quando “a revolução portuguesa de 74 que já não é… que mudou de caminho, por certo” – citando o autor. Não sei porquê, estes versos ficaram na gaveta à espera de verem a luz do dia. Conseguiram hoje. Porquê só hoje? Por que resolvo publicar este poema epistolar hoje? Não sei… Talvez seja uma má escolha ou uma (in)feliz coincidência. Corro o risco de ser interpretado por mentes mal-intencionadas mas não receio a crítica. Chico, Azedaram a festa, pá. Infelizmente esqueceram a semente e arrancam cravos do jardim. É preciso nova fest

Viver a paz em tempos de guerra

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Nos últimos seis meses estive empenhado a ler variada informação sobre a Segunda Guerra Mundial – o motivo não vem agora ao caso. Curiosamente, hoje apeteceu-me reler parte dessa recolha informativa, e o meu portátil faz-me o favor de me notificar de um email que me fora enviado em memória de Irena Sendler – Irena Sendlerowa em polaco – conhecida também como “O Anjo do Gueto de Varsóvia” ou “A Mãe das Crianças do Holocausto”. Rapidamente mudei o meu foco de atenção para outros documentos, para outros conflitos, para outras realidades mais contemporâneas… Mas voltando a Irena Sendler… Durante a Segunda Guerra Mundial, esta mulher, sabendo quais eram os propósitos dos nazis relativamente aos judeus, conseguiu ao longo de um ano e meio – até à evacuação do gueto no Verão de 1942 – resgatar mais de 2500 crianças utilizando vários meios e pretextos: ambulâncias, transportando-as como vítimas de tifo, sacos de serapilheira, cestos de lixo, caixas de ferramentas, carregamentos de

25 de Setembro: 'Bora remoçar!

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Não dou particular importância a este dia: É mais um como todos os outros 364,242199 dias! Chego até a ficar incomodado por segundos e terceiros lhe darem mais importância que eu… “É um dia para celebrar a graça de estar vivo” – dizem alguns. Pois é, e os outros – recordo eu –, não serão motivo suficiente para celebrar a vida, a graça de estar vivo? E lá vou revelhando como diria o Luís, por teimosia… Contudo, este ano foi diferente. Embora de uma forma simples, como não podia ser de outra forma: eu não o permitiria, este dia 25 de Setembro teve outro gosto (não querendo descurar os outros, obviamente); quase sem me dar conta de que o fazia, sorria (in)voluntariamente a cada palavra escrita, verbalizada… sempre senti(n)do… talvez porque tudo nele, desde o início até ao fim, foi como tem de ser, simples, natural e senti(n)do. Diz Ionesco que « na vida é preciso olhar pela janela », pois eu penso que devemos escancarar as portas e deixar entrar a luz, a

Poema-Solidão

Ermesinde, dezassete de Setembro de dois mil e quinze. Diz-me o relógio que são duas horas e nove minutos. Na rua chove torrencialmente; o vento bate nas persianas de forma tão ruidosamente violenta que nem ansiolíticos, sedativos e hipnóticos ou bebidas alcoólicas serão capazes de combater esta insónia. Tenho medo… Sim, ainda tenho muito medo… Como todas as outras, a minha insónia tem um nome: o teu! E sou eu que não me permito adormecer: não quero que venhas ter comigo em sonhos para que depois o acordar transforme o que foi um bonito sonho no pesadelo que vivo diariamente. Por mais que eu me tente convencer de que já vem sendo tempo de escrever outro poema, as minhas mãos, os meus dedos, o meu coração vagueiam em busca do teu poema, do poema que ficou por escrever… do poema que outrora adiei escrever… Por isso serás sempre o meu verso em branco. E eu serei para sempre o poeta-solidão, inútil e deambulante, de mãos cheias de nada; rei do que escondo, escravo

na sala de esperar

enquanto ele lê um jornal     ela do outro lado da sala de espera     desespera inquieta     afasta as precianas deixando a sala muito mais luminosa olha pela janela  senta-se passados breves momentos     folheia uma revista     outros jornais escuta os pássaros que chilreiam próximos da janela levanta-se e deambula em círculos pela sala tira fotográficas com o seu smartphone a pormenores que passam despercebidos a quantos diariamente por eles passam mas aos olhos dela nada passa sem uma análise um parecer        uma pateada    uma ovação no extremo direito da sala     onde ela tem a mochila pousada em cima de uma cadeira encontra-se um armário     possivelmente o arquivo adornado por um vaso e uma bola de neve de vidro que ela analisa compulsivamente ele     que entretanto desviara as suas atenções  do jornal e pousara nesta jane marple de leggings pretas túnica branca uma trança destramente desviada     observa-a tão compulsivamente quanto ela des

esboço

e eu fiquei ali     sentado a ver-te sair  enquanto os homens das mudanças entravam e saiam transportando as caixas e o mobiliário que indicaras vi tudo isso passar diante de mim imóvel     sem reação     talvez incrédulo mas expectante como se fosse a própria vida a passar por mim sem que eu tivesse tempo de me agarrar a qualquer coisa     segurar um pedaço de memória que restasse e me garantisse a continuidade da nossa vivência foi apenas nesse momento que percebi que pouco ou nada na minha vida valeu a pena que a minha última tentativa fora inutilmente gasta sim     até momentos antes     eu acreditei genuinamente que me estava a ser dada uma última oportunidade de (re)fazer alguma coisa pela minha vida     antes que me viessem cobrar o tempo que vivi ou o tempo que gastei a não viver até ao momento de saíres     deixando-me para trás sentado naquela sala    agora vazia e sem dono    eu mantive a esperança que o nosso reencontro nos reaproximaria        

le vagabond

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ilustração de Camila do Rosário pour ne pas vivre seul je marche avec l'illusion d'un vagabond par ces îles imaginaires du monde que cette youkali pour ne pas vivre seul je marche à la recherche d'un amour qui me sourire à youkali pour ne pas vivre seul je marche avec l'illusion de ne pas vivre seul nuno malela 28.VII.2015

esboço

e eu fiquei ali     sentado a ver-te sair  enquanto os homens das mudanças entravam e saiam transportando as caixas e o mobiliário que indicaras vi tudo isso passar diante de mim imóvel     sem reacção     talvez incrédulo mas expectante como se fosse a própria vida a passar por mim sem que eu tivesse tempo de me agarrar a qualquer coisa     segurar um pedaço de memória que restasse e me garantisse a continuidade da nossa vivência foi apenas nesse momento que percebi que pouco ou nada na minha vida valeu a pena que a minha última tentativa fora inutilmente gasta sim     até momentos antes     eu acreditei genuinamente que me estava a ser dada uma última oportunidade de (re)fazer alguma coisa pela minha vida     antes que me viessem cobrar o tempo que vivi ou o tempo que gastei a não viver até ao momento de saíres     deixando-me para trás sentado naquela sala    agora vazia e sem dono    eu mantive a esperança que o nosso reencontro nos r

malmequer

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hoje fui ao fundo da minha gaveta pintura de Eduardo da Costa Fernandes Macedo de Oliveira deu-me para     obsessivamente organizar e limpar toda a desarrumação que frequentemente faço habitar dentro da minha gaveta encontrei     durante essa reorganização dentro de um envelope plastificado e bem arrumadinho o malmequer que um dia desenhaste numa folha de papel que arranquei com raiva e saudade no dia em que partiste     para que     guardado nessa redoma permanecesse intacta como algo teu continuei a minha arrumação dividindo por grupos toda aquela distinta papelada o grupo-do-que-quero-guardar o grupo-do-que-não-quero-guardar o grupo-do-que-ainda-não-sei-o-que-fazer-com-isto estes grupos foram virando montes e esses montes     em montes de subgrupos espalhados pela secretária     pelo chão     na cadeira da secretária     em cima da cama et cetere o que-é-para-guardar-aqui    o que-é-para-guardar-ali o que-é-para-guardar-acolá o que-vai

«Agora é tarde»

Hoje o ensaio acabou mais tarde do que o previsto; foi também bem mais violento do que esperávamos: trabalhar com aquele tipo divide a nossa alma, estilhaça-a em pequenos pedacinhos, como quando partimos, já com o lume nos olhos, o espelho que nos mostra o repugnante da nossa alma, o espelho onde somos cinzentos, sem mácula mas não completamente inocentes e alvos. O Rui, como tantos outros, é uma espécie de espelho que revela em nós o que queremos ocultar – por vezes até de nós próprios – e lança tão violentamente quanto os nossos defeitos os pedaços de vidro que compõem a nossa alma em becos, em buracos tão fundos, tão negros, tão difíceis de penetrar e de nos encontrar de novo com a nossa alma estilhaçada. Contrariamente à minha estranha rotina pós-ensaios: comer a salada do dia – estranho é insistir chamar de salada do dia uma salada que como nunca antes da meia-noite, não deveria antes nomeá-la salada da noite? – conversar com os colegas sobre as banalidades da atualidade,

Num pedaço de papel

Quem muito se ausente, um dia deixa de fazer falta. Sentado num café com gente com quem já não estava, no verdadeiro sentido da palavra, havia já algum tempo, reparei que em cima da mesa que escolhemos – nem sei bem o porquê da escolhermos aquela mesa, já que ainda tinha os vestígios dos clientes que a usaram antes de nós: chávenas de café, pacotes de açúcar gastos e amarrotados, colheres, pratos, as migalhas, et cetera – estava amarrotado junto a um copo, pousado naquele que agora era o meu lugar, ainda sujo e com marcas de batom carmim – não o lugar, mas o copo – um papel já amarrotado e escrito; correção: o que eu encontrei foi um guardanapo de papel escrevinhado, daqueles guardanapos que normalmente estão em cima das mesas de café e que servem para limparmos a boca, as mãos, a babá do bebê, et cetera , junto ao copo usado por outra pessoa que lhe deixara nas bordas marcas de batom carmim.  Até aqui nada de anormal nem de estranheza: alguém escrevinhara qualquer coisa sem

Vamos fazer uma festa?

             Olá… Dizem que é a forma mais correta – delicada, diria eu – de iniciar uma forma carta informal – com um destinatário incógnito, mas existente, garanto-vos. Gostaria de inventar algo novo… sei lá, ou de dizer um nome, o teu nome, mas tal seria demasiado invasivo. Mas sempre posso dizer olá amiga – já que é para um tu feminino. Sim, é isso:        Olá amiga, como tens passado? Há muito tempo que não nos olhamos – há diferença, embora não pareça ente ver, é uma ação, uma capacidade biológica, é frio, tem o propósito de apenas tomar conhecimento, por vezes nem isso, de que algo existe, sem necessariamente interiorizar a sua existência. Pelo contrário, olhar necessita de atenção especial, é delicado, é um compromisso, uma responsabilidade, quase uma contemplação; o olhar é algo muito mais profundo e humano, caloroso, é perceber, é existir, é conviver, é sentir o outro; vai além da ação biológica de ver; o olhar perscruta pode até perturbar, angustiar, instigar, prender

hei de te amar

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já não estou a sós contigo já não sei dos teus erros apenas dos meus senti-me capaz de caminhar só do erro fui inventor e hoje é dura a cor   a sombra de ti que paira em mim até hoje só menti na minha incapacidade orgulhosa de admitir que errei ah pudesse parar a vida   dar um   dois   três   mil passos atrás e desses passos-erros renascer qual fénix dourada   para ti dentro de mim algo diz que há muito mais amor para dar sei que perdi e não tentarei esquecer e para ser feliz    se quiser imaginarei que sou a terra e a água das flores que crescem no teu jardim inventarei o teu sorriso criarei o teu paraíso hei de sempre chorar por ti mas quero ver-te sempre sorrir oh minha formosa sabedoria hei de amar nuno campos monteiro 08.VII.2015

não tenho tempo

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a neimar de barros na esperança que Deus lhe tenha dado todo o tempo por vezes          também eu não tenho tempo para b rincar contigo por vezes         também eu não tenho tempo para te abraçar para rir contigo         para crescer            ou simplesmente estar  são tantos aqueles que me chamam a brincar         a abraçar          a rir          a estar que parece que tudo isso é mais importante do que tu e que têm de acontecer antes de ontem         caso contrário         o meu mundo         aquele que eu criei para me sentir eu         para me sentir importante         acaba         quando na verdade         sou eu quem o põe em risco de colapsar porque “não tenho tempo” eu não quero o silêncio         não quero o sossego          mas preciso deles para não ruir com o mundo que eu criei         preciso de tempo                  e sabes o que é mais curiosos         irónico até também o tempo precisa de tempo                                          

eu confesso

gosto de abraçar os outros     é tão bom          é difícil de explicar      é como se   por momentos     pudesse e estivesse abraçando o mundo gosto de fazer os outros rir gosto da ideia que      nem que seja por breves momentos quando os outros riem    dá-se a cura de todos os males isso é talvez a coisa mais importante para uma pessoa também gosto que me façam rir     gargalhar até doer a barriga e acelerar a respiração    gargalhar aproxima-te de quem te provoca o riso e quando sou abraçado sem pedir      há quem saiba abraçar quando eu preciso sem pedir      é bom      faz-me sentir desejado principalmente quando o abraço é demorado por um longo tempo nuno campos monteiro 06.VII.2015

meu jardim de hortelã… quem me dera

quem me dera ser só olhos para te ter nos meus sonhos sem adormecer quem me dera ser só escuta seres pela manhã o mais doce despertar quem me dera ser só lábios saciar-me de ti     da água do beijo que brota da tua boca quem me dera ser só abraços ser corpo sem ser gente aninhar-te em meus ramos quem me dera ser só cheiro plantar-te no meu jardim e cheirar-te de manhã nuno campos monteiro 30.V.2015 

restos de um poema inútil

já não me seduz mais caminhar por mortos neste teatro vazio as palavras estão gastas – como disse o poeta – gastas como as sandália de couro cru nos meus pés cansados de percorrer essas calhas e becos que não me levam já a lado algum deixei para trás as esquinas que carregava comigo heranças de madrugadas inúteis esqueci mulher que me esperava com um sorriso e um pôr-de-sol nas mãos muito branquinhas como uma manhã de lençóis de linho o meu navio naufragou e só eu sobrevivi e não sinto nenhuma necessidade do poema nem preciso de sorrisos enviados em garrafas por pessoas que     na verdade     não conheço não ancorei no porto desejado porque não quis decifrar o norte traí a bússola que julgava existir nas palmas das tuas mãos e conheci a intimidade do mar     a astúcia dos ventos que me enganaram nuno campos monteiro 18.V.2015 

ricardo

ele tem ar de poucos amigos olhar fechado e sisudo anda no gamanço – todos o sabem não veste gant nem armani – isso é para maricas fato de treino dos ultra dragões cinza comprado na feira aos ciganos que sempre sai mais barato     isso sim tem brinco no nariz     alargador na orelha nos braços     com cores vivas tatuagens de caveiras     serpentes     facas uma cruz suástica e um cristo usa o boné pousado na cabeça com a pala virada a sudoeste correntes a sair dos bolsos  e pendurados ao pescoço  sentou-se no banco da paragem     sempre com os pés em cima da base espera que algo aconteça     ou a chegada de alguém qualquer um diria que espera os seus amigos insurretos para destruir ou roubar outros dirão que espera pelo agarrado que lhe compra farinha enganam-se todos hoje     não saiu de casa para roubar destruir ou traficar droga veio esperar a namorada que carrega o filho de ambos e que chegará     se o autocarro não se atrasar no próximo 204

só tenho de meu os restos de nós

alguém me encontrou e  também me perdeu numa qualquer rua do desencontro e desengano já não sou eu perdido em ti já só sou isto que sou agora homem-farrapo de dor e solidão que se agita na desventura nos ventos do engano o meu rasto revela-me o rosto dos caminhos da ternura percorridos por nós noutra vida hoje esperam-me barcas de nada palavras falsas cheias de amor em copos de vinho um travo de fel amargo de ingratidão sonhos perdidos     queixumes e quimeras um rosário negro de penas e por castigo tudo verdade nuno campos monteiro 07.V.2015

não me odeies – peço-te

não me odeies – peço-te pelos filhos que não tivemos pela casa que não construímos pela vida que celebrámos pela história que não vivemos pelos filmes que não vimos pelos livros que não lemos pelos poemas que não escrevemos pela música que não tocámos pelos copos que não bebemos pelos jantares a que não fomos pelo amor que não fizemos - por tudo aquilo que não fomos nuno campos monteiro 14.V.2015

hoje olhei para trás e sorri

hoje olhei para trás e sorri, sorri como quem acena,  como quem aceita   como que viveu  e ficou lá trás.  hoje olhei para trás e sorri sorri como se tivesse vivido muito, como se aceitasse a vida como ela é. "p'ra quê chorar se o sol já vai raiar se o dia vai amanhecer? p'ra quê sofrer se a lua vai nascer é só o sol se pôr?" hoje, olhando para trás e sorrindo, percebi que poucos feitos   ficarão meus neste mundo que pouco tenho que faça sentido... por isso olhei para trás e,   entristecido, sorri... nuno campos monteiro (escrito a 12. II.2014)

in recordações de ti

(...) e foi então que o tão desejado – porém inesperado – momento aconteceu:  perscrutando o trêmulo olhar, disse “anda que eu pago-te um sorriso” e terminou a sua proposta com um ousado beijo deixando toda a assembleia perplexa.   Catarina levantou-se: aceitou a segurança que a mão, à sua frente estendida, lhe oferecia; sorriu e deixou-se conduzir por ele para o desconhecido, para um mundo ainda por descobrir. Já iam a dobrar a esquina quando alguém gritou a pulmões cheios: “tens a certeza que é isto que queres?” Pararam e entreolharam-se. Sorriram e Catarina respondeu: “não sabemos mas juntos vamos descobrir; se nunca tentarmos nunca o saberemos”. Então ele acariciou-lhe o rosto afastou-lhe o cabelo, que o vento empurrara para a frente dos olhos, e confessou: " apenas sei que perco a inspiração se tu não estás comigo!" E juntos percorreram um longo caminho... Hoje observo tudo isto numa remota memória como fosse uma bonita pintura... in recordações de ti