"O tempo das suásticas"


Sob a frase-mote da autoria de Zalmen Gradowski, "Porque sabemos, temos uma escura premonição", sublinha-se hoje o 75.° aniversário da libertação dos prisioneiros do maior campo de concentração e extermínio erigido pelo regime nazi, Auschwitz, e que, não por acaso, coincide com a celebração anual do Dia da Memória do Holocausto.

Porquê recordar hoje - eu que não vivi, não senti directa ou indirectamente o flagelo da Segunda Guerra, tampouco conheço sobreviventes ou seus descendente - "o tempo das suásticas" (Primo Levi, 1960)? Porque é um dever de todos! 

Num texto publicado em 1960 por Primo Levi a propósito da Exposição da Deportação, se refere ao período nazi, cujo título mencionei, o autor alerta para "o silêncio do mundo civilizado", para o nosso próprio silêncio vergonhoso, pois "somos homens pertencemos à mesma família humana a que pertencem os carrascos. Diante da enormidade da culpa deles, sentimo-nos, nós também, cidadão de Sodoma e Gomorra. [...] Quem pode ter a certeza de estar imune à infecção?" (Primo Levi, "Assim foi Auschwitz", pp. 72-73). E é por isso que esta data não pode ser indiferente, não pode passar despercebida.

Não pode passar despercebida, quando a memória se esbate, se anula e diminui, quando um terço dos europeus não sabe ou não quer saber o que foi o Holocausto. Não pode passar despercebida, quando a extrema-direita e o populismo aumentam o seu raio de influência, respondendo a um desconforto a que ainda não conseguimos dar nome, e negam os direitos básicos de vida dos seus semelhantes, dos desfavorecidos, dos marginalizados, citando Goebbels desaforadamente. Não pode passar despercebida, quando ditaduras esclarecidas, mais ou menos dissimuladas e pseudo-democracias escravizam, torturam, perseguem, desacreditam, silenciam legítimos opositores. Não pode passar despercebida, quando prolifera o desrespeito pelo ser humano, a indiferença pelo outro, a carnificina física e moral entre os semelhantes. Não pode passar despercebida, quando num mundo que se diz e quer evoluído , sentimo-nos no direito à barbárie e somos capazes das maiores atrocidades.

É necessário, sim, recordar, falar exaustivamente e mais além, porque, num mundo onde Auschwitz foi possível, numa Europa culta que chegou a um estádio de desintegração humana, o esquecimento é um insulto histórico, uma ameaça letal!  Pois como escreveu Levi, "não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois deveria levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve a coragem de fazer ao homem” (Primo Levi, "Se isto é um homem", p. 55).


* Zalmen Gradowsk, um judeu polaco, foi Sonderkommando [prisioneiros encarregues de lidar com os cadáveres e limpar os fornos crematórios] em Birkenau e que fez parte da revolta de prisioneiros neste campo, em outubro de 1944, morrendo na tentativa.

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